domingo, 26 de março de 2023

Não bastam os afectos positivos para respeitar as diferenças culturais

Eu montado num cavalo, com o meu tio-avô Petrus
 Muito menos a boa fé ou as boas intenções. De boas intenções está o inferno cheio, não é verdade?

Estou a gostar muito de ler o "Como Aprendi a Compreender o Mundo", de Hans Rosling. O excerto que a seguir transcrevo refere-se a uma ocorrência no final dos anos 50 do século XX, na Suécia.

Graças às nossas poupanças, ao fim de alguns anos na nossa nova casa, pudemos fazer férias em família. Os meus pais compraram uma lambreta vermelha e uma bicicleta tandem azul, e a minha mãe fez uma tenda. Na primeira vez, andámos pelo condado de Uppland e nunca nos afastamos mais de uma centena de quilómetros da nossa casa. Acabamos por visitar os dois irmãos solteiros da avó Agnes, que viviam juntos na quinta da família e nos receberam calorosamente.

Fui autorizado a montar em pelo o grande cavalo deles, conduzido por Petrus, o irmão mais velho. Quando o meu pai me fotografou a cavalo, mostrou um choque de culturas. Ele achava que era uma fotografia particularmente bem conseguida: o enorme cavalo da quinta com o rapaz da cidade no dorso, ao lado do velho agricultor com as suas botas altas.

O meu pai enviou uma cópia da fotografia a Petrus, para lhe agradecer a hospitalidade que ele manifestara. Não foi bem recebida. Petrus ficou ofendido, porque a fotografia o mostrava com as suas jardineiras e botas. Se era para ser fotografado, seria apenas quando vestisse o seu único fato escuro. Se as pessoas da cidade tiravam fotografias dele com as suas roupas de trabalho, só podiam querer troçar do seu familiar campónio. Os meus pais acabaram por resolver o conflito, mas demorou-lhes quase dois anos. Serviu para nos lembrar que devemos sempre respeitar as diferenças culturais. Petrus era um homem sensato e amável, e isso tornou a lição ainda mais eficaz.

quinta-feira, 24 de junho de 2021

NASCER-DO-SOL É MINUTO ANTI-STRESS, FERNANDINHO? CONCORDO.

NASCER-DO-SOL É MINUTO ANTI-STRESS, FERNANDINHO? CONCORDO.

Na longuíssima carta que António Gedeão deixou aos tetranetos ele escreveu assim:

«Uma das características da vida actual é o desamparo, a solidão, o desapego, a monotonia, a indiferença, o cansaço. Apareceu mesmo, na vida moderna, um termo que pretende exprimir isso tudo e mais alguma coisa. É o "stress", palavra estrangeira que explica todos os desvarios, todo o esvaziamento e esgotamento dos seres humanos.»

Gedeão, ou seja, Rómulo de Carvalho, não era homem de sorriso fácil, nada fácil mesmo. Mas não tenho dúvida de que ele, se se juntasse a nós nestes nossos madrugares, sorriria muitas vezes e com muito gosto.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

QUE NEM LAGARTO AO SOL

Hoje caminhei para o consultório com folga de tempo.
Apetecia-me um café, mas já me aborreci com o mau atendimento do bem vistoso e muito moderno café-pastelaria que está logo ali à saída do Metro. Não, este tem mesas largas e espaço amplo, mas ali não ficaria.
Fiz o primeiro quarteirão a ler vagarosamente, cuidando de, antes de enfiar os olhos no livro, observar até ao cruzamento seguinte, a calcular a linha de caminho mais desimpedida. Sabia-me bem o calor do Sol, que me aconchegava pelo lado que melhor me sabe, o esquerdo. Lá na outra ponta, os semáforos estavam verdes para peões, atravessei a 5 de Outubro. O pequeno estabelecimento do café, que serve o café expresso que mais aprecio, o Buondi, era já ali à frente, mais três ou quatro passos.
Mas o sol estava a saber-me mesmo bem. Pensei fugazmente na dose mínima diária de sol que os especialistas nos recomendam fazermos. Sim, tinha tempo. O buondi iria esperar mais um pouco, e acrescentei um pedacinho de prazer antecipado a lembrar-me que só me custaria 50 cêntimos. No tal modernaço teria pago 70 cêntimos, e no café do outro lado da rua 65 cêntimos - pagar nitidamente menos pelo café expresso mais apreciado não é ganho extra de todos os dias.
Mesmo ali ao lado direito, na parte mais de dentro do passeio, um pequeno canteiro com um bordo à altura ideal de apoiar o cotovelo.
Que bem o sol continuava a saber-me! A luz espalhava-se, abundante, nas páginas que os olhos percorriam, sem os ferir - muito lindo o dourado vertido nas páginas, tomava eu consciência!
Um transeunte chegou-se a mim e educadamente, num português do Brasil, perguntou-me pela estação de Metro. Indiquei-lha.
Retomei a leitura, voltando à consciência do saboroso calor do Sol e do muito agradável dourado das páginas do livro. A que juntaria, dali a pouco, o gostoso sabor dos 50 cêntimos de café...
Outros transeunte, o mesmo pedido de informação, desta vez com sotaque forte de português africano. A mesma delicadeza de trato.
Faziam-se horas. Caminhei para o minúsculo café. Ainda mal entrara, uma muito suave e jovem voz de menina brasileira me dava as boas tardes. Correspondi e pedi uma bica.
Enquanto a menina tirava o café, puxei do porta-moedas e peguei numa moeda de 50 cêntimos, que pus em cima do balcão. A mão que pousou a chávena do café à minha frente foi a mesma que pegou na moeda. Reparo que põe a moeda bem à frente dos olhos, mira-a dum lado, mira-a do outro. «Senhor, é sessenta cêntimos.» «Mas ainda ontem paguei cinquenta...» «Sim, é verdade, mas cinquenta cêntimos é só à quarta-feira, nos outros dias é sessenta.» «Uma promoção do dia, é? Ou melhor, despromoção, promoção foi ontem.» A rapariga riu-se e encolheu os ombros. Eu estava bem disposto, com o calor do sol e a luz dourada das páginas ainda a reverberarem nos sentidos. «Já sei o que vou fazer, na quarta-feira da semana que vem tomo logo sete cafés seguidos, fico com a semana toda feita de cafés mais baratinhos!» A menina riu-se outra vez.
Saio para a rua e enfio logo os olhos outra vez no livro. Dou dois passos e logo um rosto muito bonito de jovem senhora me esbarra o caminho. Trocamos abraços, trocamos sorrisos, fazemos conversa, pergunto-lhe pelo rapaz dela, um valente moço. Sim, está muito bem, no 10.º ano, num curso profissional, está a gostar muito, está a ter boas notas. O trabalho que este rapaz já deu!... Um verdadeiro herói. Gostava muito de o voltar a ver, deve estar um homem! «Vá, diz-lhe que arranje um espacinho na agenda dele para irmos almoçar e pormos a conversa em dia.» A senhora, agora mãe, lembro-me dela ainda a dar passitos titubeantes... Os anos passam... Muitas dificuldades aconteceram, agora parece que estão bem. Fico contente pelo moço e fico contente pela mãe-que-foi-menina - e ainda parece menina.
Subo ao escritório. De sentidos docemente preenchidos e sentimentos carinhosamente despertados. Quase apetecia deixar-me levar, indolente. Forcei-me a reagir. Quem me procurava merecia todo o respeito e entrega, pessoal e profissional.
Duas horas depois saí outra vez para a rua. Eu vinha seguro de que o que tinha de correr bem correu mesmo muito bem. Mais um bocadinho de sol gostoso.
No Metro, enfiei outra vez os olhos no muito interessante livro que precisava do tempo das viagens de carris para prosseguir a sua própria viagem. Já as páginas não tinham o encantador dourado de horas antes - mas um dia ele voltará!

sábado, 17 de março de 2018

O Grande Irmão está vigiando-nos...

Estou a orientar, em co-autoria, uma acção de formação para professores e psicólogos.
Anteontem recebi um email do colega coordenador do Centro de Formação que enquadra a formação. Dizia a missiva, no principal, que tinha recebido um email de uma colega, formanda, a lamentar-se de que eu não havia respondido ao seu email (já vamos em 3 emails); bem, afinal, a colega não me havia mandado um email, mas sim dois.
Fui ver o que se passava, e constatei que os emails da colega (de conteúdos legítimos, circunstanciais e, por isso, a justificarem uma resposta pronta da minha parte) tinham sido enviados para um endereço de email, sim, com o meu nome, mas cuja existência eu desconhecia, ponto.
Quando disto informei o colega coordenador, ele explicou-me que o sistema informático gera automaticamente um endereço virtual (e a respectiva caixa de correio) para o professor formador, facto que eu também desconhecia absolutamente... Depois acrescentou que, não obstante, também automaticamente faz o reencaminhamento das mensagens para o endereço de email que o professor formador tenha fornecido ao centro de formação para ser usado no âmbito da acção de formação.
Eu disse ao meu colega coordenador - pessoa por quem tenho muito respeito e estima - que não tinha recebido nada da colega que se compreensivelmente se afligira com a minha falta de resposta, nem antes das datas dos seus emails, nem nesses dias, nem depois.
A isto o meu colega respondeu-me que o sistema, isso, o sistema, lhe mostrava que eu tinha recebido na caixa de correio do endereço que forneci ao centro de formação os emails encaminhados a partir da caixa de correio do endereço automaticamente criada para mim pelo sistema quando eu fui oficialmente designado formador da acção de formação que ia ministrar em co-autoria. Uff!...
Perante esta "certeza", "comprovada", do sistema, fui novamente ver todas as minhas caixas de correio 'on line'; inclusivamente, as secções de 'spam'. Nada! Nem uma única letra ou arroba perdido que pudesse indiciar a presença de um, quanto mais dois!, email perdido.
E pus-me a pensar: olha se isto fosse um assunto sério que tivesse de ser dirimido em tribunal... Era a minha palavra contra a do sistema. Na qual o juiz encontraria a verdade? Bem, felizmente isto aconteceu entre pessoas que se respeitam e confiam entre si, e o caso foi identificado - e morto! - à nascença.
Entretanto, será esta a crucialmente preocupante questão? No meu ver, ainda não é. A crucial questão, para mim, tem a ver com estes sistemas implacavelmente cegos e radicalmente ininteligentes que, por mais subsistemas que se criem para retroactivamente (vulgo 'feedback') verificarem (vulgo, 'checarem') a correcção dos procedimentos do sistema para se evitarem os erros, mostram falhas - falhas graves. Que ditam estupidamente e acriticamente "ocorrência verdadeiras", "certificadas" por 'bits' electrónicos disparados não sei de onde criando realidades que não existem. A fazer lembrar a citação que ainda hoje li de Nassim Nicholas Taleb: «Loss of touch with reality is the plague of our time» (A perda de contacto com a realidade é a praga do nosso tempo)
Resumindo: os olhos, os tentáculos, do Grande Irmão são cada vez mais extensos e dissimulados; e muito provavelmente as mentiras que criam sobre as pessoas utilizadoras - quantas delas compulsivamente obrigadas porque cada vez mais se obrigam os utentes de tudo a comunicarem apenas pela Internet! - também aumentarão na mesmma medida da dissimulação do controlo.
Como eu desabafava com o meu querido amigo professor coordenador, isto é kafkiano, orwelliano, ou huxleyliano?

domingo, 5 de março de 2017

OS FIOS DA COMUNICAÇÃO HUMANA

Psicologia - Frase da semana, 05MAR17: OS FIOS DA COMUNICAÇÃO HUMANA

«God meant us to be wireless. The last cord we were connected to was cut at birth.» (Frank Sanda, Motorola)

Deus quis que fôssemos 'ligações sem fios'. O último fio que nos liga é cortado na hora do nascimento.

Pois, sem comentários...
Não, um pequeno comentário: na minha opinião, mais do que valorizar a tecnologia, a afirmação avisa-nos que o que faz as ligações é a mente, é a consciência, é o que pensamos voluntariamente, o pensamento dirigido sobre mim e sobre os outros; com os outros, em relação de vai-vem, de lá para cá e de cá para lá. Um exemplo de velhos 'wireless': há quanto tempo, na evolução humana, há pais possessivos e até à distância tentam controlar os filhos?

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

A SOLIDÃO DA ANGUSTIANTE CONDIÇÃO HUMANA

Psicologia - Frase da semana, 26FEV17: A SOLIDÃO DA ANGUSTIANTE CONDIÇÃO HUMANA

«O Homem foi criado para levar a sua própria cruz. E para isso o dotaram de vigorosos ombros. Enquanto o Homem se suporta a si próprio, pode suportar um sem-número de coisas.» (Alex Munthe, "O Livro de San Michele, Livros do Brasil, 6.ª ed., p. X)

«Henry James [...] pôs-me a mão no ombro, perguntando-me o que tencionava fazer; respondi-lhe que era meu desejo deixar a França para me esconder como um desertor na minha velha torre de Anacapri, o lugar mais adequado para mim. Ao despedir-se, recordou-me que, muitos anos atrás, quando fora meu hóspede em Anacapri, me tinha querido persuadir a que escrevesse um livro acerca de San Michele, a que ele chamava o mais belo lugar do Mundo. [...] Que estudo fascinante para um homem como eu, apaixonado pela psicologia! Não há nada para esquecer a própria miséria como escrever um livro; nada melhor também quando não se pode dormir.
Estas foram as suas últimas palavras; não o tornei a ver.
[...] Tornou a reinar o silêncio na velha torre e de novo me encontrei a sós com a minha angústia.
O Homem foi criado para levar a sua própria cruz. E para isso o dotaram de vigorosos ombros. Enquanto o Homem se suporta a si próprio, pode suportar um sem-número de coisas. Pode viver sem esperança, sem amigos, sem livros, até sem música, contanto que seja capaz de escutar os seus próprios pensamentos, o canto dos pássaros em frente da janela e a voz do mar ao longe. Diziam-me em St. Dunstans (1) que um homem pode viver até sem luz; os que tal afirmavam eram heróis. Mas a vida é impossível sem dormir. Quando perdi o sono, comecei a escrever este livro, depois de ter ensaiado todos os remédios inofensivos. Pelo que a mim se refere, o resultado foi excelente. Bendisse muitas vezes Henry James pelo seu conselho; ultimamente tenho dormido muito melhor. A tal ponto que me causou prazer escrever este livro.»
Quanto o dr. João dos Santos gostava de falar aos seus alunos sobre o frente a frente de cada um de nós com a sua vital angústia!...

sábado, 14 de janeiro de 2017

O QUE FAZER COM A LOUCURA QUE TEMOS?

Psicologia - Frase da semana, 15JAN17: O QUE FAZER COM A LOUCURA QUE TEMOS?

«A loucura, longe de ser uma anomalia, é a condição normal humana.» (Fernando Pessoa,  Aforismos e afins, Assírio & Alvim, 2003, p.16)

«A loucura, longe de ser uma anomalia, é a condição normal humana. Não ter consciência dela, e ela não ser grande, é ser homem normal. Não ter consciência dela e ela ser grande, é ser louco. Ter consciência dela e ela ser pequena é ser desiludido. Ter consciência dela e ela ser grande é ser génio.»
Parece que Fernando Pessoa não nos deixa escapatória: temos mesmo de escolher, entre as alternativas, a loucura que melhor encaixa com o que pensamos de nós mesmos. Não obstante, por melhor que façamos, há ainda a hipótese de nos enganarmos.